SOCIALISMO: Um Projecto de Sociedade


Miguel Judas

CAPÍTULO 8 "Socialismo Político" e "Socialismo Económico"

Existem bastantes imaginários quanto à configuração de uma sociedade socialista desenvolvida, e ainda mais teorias quanto às vias a seguir para a transformação da sociedade capitalista em socialista, os quais resultaram tanto da observação crítica das experiências anteriores já concretizadas (Comuna de Paris, Revolução Soviética, Jugoslávia, China, Cuba...) como da diversidade das condições históricas, económicas e culturais específicas de cada povo, de cada "civilização" (ocidental, oriental, latino-americana...). Uma boa parte dessas teorias focam-se nos processos de tomada do poder pelos trabalhadores e outras sobre os modelos políticos e económicos de transição e de construção do socialismo. Surgiram assim múltiplas variantes teóricas e práticas a partir de uma mesma base marxista: o marxismo "jovem", o marxismo "maduro", o leninismo, o marxismo-leninismo, o maoísmo, a perspectiva gramsciana, o guevarismo, o socialismo "de rosto humano", o socialismo do Século XXI... Não se irão aqui analisar as particularidades de cada uma dessas variantes sobre as quais continuam hoje a surgir múltiplas interpretações. De um modo sintético, referir-se-ão apenas algumas regularidades e outras tantas divergências. No plano estritamente político chegou-se mais ou menos ao consenso sobre a aceitação como característica política fundamental do Socialismo a "Democracia Radical", de base, directa, participativa e protagónica, de baixo para cima e excluindo qualquer forma de "representação", abolindo os "cargos" e substituindo-os por "funções de responsabilidade social" a todo o momento revogáveis (conselhos, comunas, estruturas de auto-organização social, etc.).

Está também relativamente adquirido que Socialismo e Estado constituem duas categorias antagónicas e que, a prazo, este se extinguirá, dando lugar a estruturas de auto-organização social de nível elevado, integradoras da sociedade no seu conjunto. O que não está, porém, muito bem entendido e que constitui objecto de acesas controvérsias, é de como será possível desenvolver, consolidar e aprofundar esse tipo de democracia radical num quadro de fragilidade geral das forças revolucionárias emergentes face ao imperialismo capitalista estabelecido, designadamente face às dificuldades decorrentes da contra-revolução violenta. Por isso, ainda hoje as forças revolucionárias se debatem com a aparente contradição entre a necessidade de promover a "democracia radical" e, simultaneamente, a necessidade de manter o hierarquismo centralista e a unidade de direcção capazes de fazer frente tanto às contra-ofensivas da burguesia interna como do imperialismo capitalista. Muitos socialistas, têm ainda dificuldade em compreender que, enquanto o imperialismo capitalista se mantiver hegemónico à escala mundial, não será possível implantar e manter, na sua plenitude, a democracia radical "da base ao topo". Ainda hoje, em processos de profunda transformação social e política a decorrer na América Latina, como nos casos da Bolívia e da Venezuela, que promovem a transferência de poderes efectivos e amplos recursos para as organizações populares de base, até que ponto a burguesia reaccionária não tenta aproveitar-se dessa descentralização para minar a unidade dos respectivos Estados, fragilizá-los estruturalmente, desorganizá-los e, a partir dessa situação, provocar a desordem institucional e funcional, gerar descontentamento popular e lançar uma contra-ofensiva reaccionária? É à volta desta questão, de uma equívoca ponderação entre os níveis de descentralização vs "centralismo", de "basismo radical" vs "institucionalidade" que, normalmente, surgem os fenómenos ditos "esquerdistas", os quais, frequentemente, a burguesia reaccionária alimenta e neles se apoia para justificar a "reposição da ordem".

Em consequência, constituindo embora a descentralização e a democracia radical a tendência e a linha orientadora fundamental, ela deverá ser sempre encarada numa perspectiva prática e concreta, isto é, com base na avaliação, a cada momento, do que melhor serve o processo de transformação social; nuns momentos descentralizar e noutros recentralizar, nuns momentos impulsionar a iniciativa das bases populares e noutros consolidar a institucionalidade revolucionária, em movimentos pulsatórios desencadeados oportunamente, de modo a reforçar o potencial revolucionário e impedir que o sistema institucional da Revolução seja enfraquecido. O paradigma máximo desta incompreensão (ou colonização ideológica burguesa) revela-se nas críticas condenatórias tanto das iniciativas "radicais" das massas populares como do centralismo e da defesa obstinada da unidade política no período da liderança de Estaline na URSS, do qual resultaram, entre outras extraordinárias vitórias nos âmbitos produtivo e cultural da URSS, a derrota do destacamento de "vanguarda" do imperialismo capitalista, o nazi-fascismo, o forte alargamento do campo socialista e o recuo estratégico do capitalismo para o modelo social-democrata em muitos países avançados, de que ainda hoje muitos povos beneficiam, além do extraordinário reforço das condições de libertação (nacional, política, social, económica e cultural) de todos os povos do mundo. O exemplo da Comuna da Paris, o caso mais conseguido, até hoje, da "democracia radical", ensinou as subsequentes gerações de revolucionários que enquanto os perigos da contra-revolução existirem, enquanto o Socialismo não se tornar hegemónico à escala mundial, a Revolução tem a obrigação de se defender, mantendo para isso uma forma, seja qual for, de Estado ou direcção central capaz de concentrar as forças e dirigir eficientemente as lutas de resistência às contra-ofensivas burguesas e imperialistas. Tal estado de coisas, caracterizado por um "meio caminho" entre a hierarquia centralista e a democracia política radical, comporta sempre a possibilidade de a situação evoluir em qualquer dos sentidos, consoante as condições concretas que se verifiquem, externa ou internamente, isto é, no sentido do aprofundamento das conquistas socialistas ou no sentido inverso, da restauração do poder capitalista. Tal foi o caso da URSS, especialmente após a morte de Estaline, onde a nova classe política e económica, depois de ter feito refluir, neutralizar e anular o processo de democracia radical, se transformou numa nomenklatura dirigente auto-reprodutiva, cada vez mais afastada das massas, acabando, por fim, por se apropriar dos meios de produção e a reconstituir o capitalismo, podendo o mesmo vir a passar-se em outros países de orientação socialista. Esse fenómeno de burocratização e afastamento das massas foi, aliás, previsto pelo próprio Estaline numa entrevista dada em 1925 cujos extractos foram publicados no sitio da internet http://www.marxists.org/portugues/stalin/1925/06/perigos.htm sob o título "Perigos de Degenerescência do Estado Soviético". Nota: Estas referências do Autor relativamente a Estaline e ao seu período de direcção do PCUS, são, para além de apropriadas, intencionais; elas visam chamar a atenção sobre a necessidade de se estudar aprofundadamente as diversas experiências de implantação do socialismo já ocorridas, sem preconceitos e, muito menos, olhando-as através dos filtros ideológicos ou propagandísticos da burguesia. Nesse sentido, o Autor, como livre-pensador e não seguidor de quaisquer "apóstolos", recusa-se a conquistar "credibilidade" através de distanciamentos prévios relativamente a Estaline ou a outros grandes revolucionários que, em circunstâncias concretas, poderão, eventualmente, ter cometido erros políticos ou de carácter. No plano estritamente económico, porém, nunca se chegou a qualquer consenso, mantendo-se a controvérsia entre a propriedade pública e a social, o planeamento central e o mercado, o dirigismo e a auto-gestão, a mercadoria ou a utilidade, o "crescimento económico" e a sustentabilidade, etc., mas sempre numa perspectiva de que a economia constitui uma esfera de actividade "à parte", isto é, dotada de grandes níveis de autonomia relativamente à esfera estritamente "política". Esta "confusão" tem tido como resultado nunca se ter chegado a configurar o que seja um "sistema económico" realmente socialista e as "leis" ou os instrumentos próprios da sua gestão. Uns, mais tradicionais, partem da experiência continuada da antiga URSS para concluir que a alteração das relações de propriedade (como a condição básica para a modificação das "relações de produção") é suficiente para a vitória do Socialismo; outros, como o Che, percepcionaram que o caminho para o socialismo só é possível se acompanhado de uma nova Cultura revolucionária, do desenvolvimento do ser humano e das suas múltiplas capacidades, enquanto "força produtiva" potenciada; outros ainda, mais perfeccionistas, opinam que será necessário alterar todo o "metabolismo do capital", incluindo a concepção das empresas e da maquinaria, para que o Socialismo se afirme. Provavelmente, a primeira perspectiva relaciona-se mais com (uma das formas possíveis) do início da marcha para o Socialismo; a segunda, com a plena marcha; e, finalmente, a terceira, com o fim do caminho para o Socialismo. O primeiro caso aponta no sentido de que bastará nomear dirigentes "revolucionários" para a direcção das empresas e estabelecer um "plano" para que o Socialismo se implante; o segundo, valoriza a componente subjectiva, a consciência revolucionária e a moral socialista; o terceiro sugere que se substitua desde já a base tecnológica e organizacional do capitalismo por novas empresas e nova maquinaria adaptada à "não divisão do trabalho".

Afinal, qual a conclusão a que poderá chegar entre tantas possibilidades "intermédias", decorrentes tanto da diversidade dos pontos de partida como dos pontos do percurso em que o processo revolucionário se encontre? Toma-se (a direcção política, de vanguarda ou iluminada) as estruturas produtivas capitalistas tal como elas são e introduz-se-lhes uma dimensão "solidária"? Introduz-se uma dimensão "participativa" ao planeamento central? Persiste ou não o mercado e a produção mercantil e em que medida? Entrega-se a gestão das empresas aos respectivos trabalhadores fazendo deles "usufrutuários" desses negócios? Introduz-se a "NEP" ou avança-se para a colectivização? Segue-se pela via do "etapismo" ou pela da "revolução permanente"? "Faz-se" o Socialismo com a burguesia patriótica ou "radicaliza-se"? Constitui-se um gabinete de concepção e projecto de novas empresas e maquinaria "à socialista" ou retém-se a base tecnológica "capitalista"? Aplica-se a democracia radical no âmbito dos assuntos gerais da sociedade e mantêm-se as relações dirigistas-hierárquicas na esfera económica? Mantém-se a divisão do trabalho reprodutora das classes sociais ou introduz-se a polivalência dos trabalhadores e a rotatividade de funções? Como organizar e gerir à socialista as diversas cadeias económicas e os seus ciclos (produção, distribuição, consumo, acumulação, investigação-inovação e reinvestimento)? Como ordenar territorialmente as actividades económicas e as comunidades humanas e assegurar as devidas proporções entre os diferentes "sectores" e "núcleos urbanos"? Como compatibilizar a "exploração económica" e a artificialização do ambiente com os equilíbrios e ciclos naturais vitais? São numerosíssimas as questões que permanecem em discussão no âmbito da reestruturação do "sistema económico" no sentido do Socialismo as quais inspiram e têm dado origem às mais variadas teorias e "experiências" de edificação socialista. Independentemente dos vários conceitos que existam e que são discutidos (muitas vezes de modo académico) quanto aos modelos de "gestão socialista" da economia, a visão que se tem é, invariavelmente, uma visão de cima para baixo e "separada" dos processos de gestão política, social, cultural e ambiental, isto é, uma visão desligada das massas e que não integra todas as dimensões do processo transformador. Confusões Daqui as confusões, frequentemente repetidas, entre o Socialismo como um Projecto Político ou como um Projecto Económico, a partir das quais se manifestam contraposições da mais diversa natureza. Na vertente política, a principal contraposição verifica-se entre a democracia representativa, tradicionalmente apoiada pelas correntes liberais e sociais-democratas e a democracia radical defendida pelos socialistas, subsistindo ainda pendente, se bem que somente no plano conceptual, a questão da "ditadura do proletariado", defendida pelos comunistas na altura da Revolução Russa como a "ditadura das maiorias trabalhadoras" em contraste com a "ditadura da burguesia minoritária". No "meio", entre as democracias representativa e radical, surge ainda o conceito de "democracia participativa", tendente a superar as perversões e incapacidades hoje notórias da democracia representativa, a qual combinaria traços desta com amplos processos de descentralização de poderes para as comunidades organizadas e com mecanismos de participação social continuada junto dos órgãos da democracia representativa, de modo a inibir a "opacidade" em que esta caiu e a melhorar a prestação de contas (accountability). Porém, esta posição "mediana", tal como noutros casos, tanto poderá pender mais para um lado como para o outro, isto é, tanto ficar refém dos lobbies e "interesses especiais", empresariais e corporativos, como acontece com os governos liberais e sociais-democratas, ou evoluir para um efectivo "empowerment" das comunidades organizadas, no sentido da democracia radical. Na vertente económica, confrontam-se três opções fundamentais: - a social-democrata, que corresponde a uma ideia de socialismo reduzida a uma difusa "justiça social", de carácter "redistributivo", sem por em causa as relações de produção capitalistas e a uma ainda mais difusa ideia do Estado como "regulador" da economia; - a socialista, fundada no conceito de Democracia Integral que submete o Poder Económico à soberania popular, que advoga a socialização dos principais meios de produção e o planeamento democrático das actividades produtivas; - a comunista inspirada na experiência soviética, segundo a qual o Socialismo implica a nacionalização de todos os meios de produção e o planeamento central da economia, resolvendo desse modo a contradição entre o carácter social da produção e o carácter privado da apropriação. Estas soluções políticas e económicas poderão combinar-se sob várias formas e diferentes matizes. Porém, umas são "viáveis" e outras não o serão, na perspectiva de superar a hegemonia capitalista. No plano estritamente político, a linha divisória dessa viabilidade passa pelo "interior" da democracia participativa, entre a sua versão lobbista/corporativa e a linha de empoderamento comunitário. Só a partir desta no sentido da democracia radical será possível viabilizar uma evolução no sentido do Socialismo. Qualquer tipo de modelo democrático representativo ou "participativo" que não consiga ultrapassar essa linha divisória não constituirá "infraestrutura política" suficiente para o desenvolvimento de um processo de transformação da sociedade. Por outro lado, está demonstrado pela vida que as "soluções económicas" sociais-democráticas ou segundo o modelo soviético não resultam em Socialismo; no primeiro caso, porque simplesmente tal não é procurado, limitando-se a gerir o Capitalismo na ilusão de que a grande burguesia internacional terá alguns laivos de "humanismo"; no segundo caso, porque a nacionalização de todos os meios de produção sem democracia radical e sem cultura socialista de massas conduz a um Estado burocrático gigantesco e ineficiente. As inconsistências e "confusões" que durante tantos anos têm persistido quanto ao conteúdo do conceito de Socialismo e aos modelos "sectorizados" com que tem sido tratado (político, económico, cultural, ambiental...) têm sido sabiamente aproveitadas pelo capitalismo. O deficit democrático verificado na União Soviética e nos países do "socialismo real" em virtude da apropriação do Poder pelo partido dirigente, tanto deu fundamento à campanha da grande burguesia no sentido de apresentar a Democracia e o Socialismo como categorias antagónicas, como fragilizou a luta ideológica dos revolucionários socialistas em todo o mundo a favor da Democracia. Esta circunstância, associada às cedências temporárias do Capitalismo no que se veio a designar como "Estado-social", possibilitou o estancamento da atractividade do Socialismo em muitos países centrais e o reforço dos partidos sociais-democratas, dos partidos do chamado "socialismo democrático" (que de socialismo não têm nada e de democracia só a representativa ou, no máximo a "participativa-lobbista"). Do mesmo modo, o industrialismo acelerado e pouco reflectido em termos ecológico-ambientais de muitos países socialistas e um retardo da incorporação das preocupações ambientais na "doutrina" do Socialismo possibilitaram uma ascensão meteórica dos partidos ditos "verdes", teoricamente defensores da Sustentabilidade, sem entenderem que tal não será possível senão num quadro geral de luta pela construção do Socialismo.

Igualmente a "confusão" persistente entre o individual e o colectivo, apresentada de forma dúbia mas com uma clara preponderância do "colectivo", suscitava relutância em muitas camadas sociais, tanto mais que, frequentemente, os esclarecimentos relativos a alguns factos passados em países socialistas, abrangendo pessoas individuais ou grupos sociais, não eram nem claras nem convincentes. A passagem de "herói" a "vilão" e vice-versa era demasiado rápida para o entendimento comum. As restrições à informação e à liberdade de associação, justificadas em certos momentos por necessidades de defesa contra as agressões imperialistas, tornaram-se a norma, subsistindo, por isso, dúvidas legítimas sobre o respeito pelos direitos humanos fundamentais. Os fins não justificam os meios e, como tal, não devem os socialistas deixar de reconhecer que os meios utilizados não só conduziram à derrota do campo socialista na área da antiga União Soviética como provocaram a fragmentação ideológica e política, ainda persistente na actualidade, dos revolucionários pelo mundo fora. Como resultado dessas e outras "confusões", muitas delas ainda persistentes em muitos espíritos, o conceito de Socialismo ficou demasiado obscurecido e a sua "imagem pública" ficou deteriorada. Não admira, por isso, que para vastos sectores sociais da maior relevância para o Futuro, sem a adesão e o entusiasmo dos quais o Socialismo será impossível, subsistam dúvidas sobre se o Socialismo é Democrático, Libertário, Eficiente e "Verde".

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